(imagem via google)
Escolhi a carne. Sim, a gente é feito de quê? Não há para o ser humano
coisa mais íntima, principalmente quando se trata de seu próprio corpo. Há quem
diga que sente asco e nojo. Pura bobagem! É claro que contemplá-la assim, em
cima desse balcão, toda ensanguentada e picada, pode não ser lá muito agradável
para os olhos de muitos. Mas é assim que
deve ser, sangue e carne andam juntos. Perguntaram-me certa vez: você não
escolheu ser açougueiro, escolheu? Escolhi sim, respondi. Herdei do meu pai não
só este açougue mas também a aptidão plena para exercer o ofício de açougueiro.
Para mim carne é o que há de mais importante, é dela que vem o gosto, o cheiro, a textura e a
forma de cada um. Ela me deu tudo na vida, criou meus filhos, sustentou minha
família e nos regou com certas regalias.
Foi assim também com meu pai e o pai do meu pai. A carne nos deu dignidade, por isso a trato
com muito respeito e até com carinho. Para aqueles que têm repulsa, eu respeito
mas não entendo. Como se pode tratar com repulsa algo que em ti pulsa?
Esta faca pontiaguda que trago na mão é meu instrumento de trabalho, dela
não largo. Mantenho-a afiadíssima. O corte tem de ser perfeito, a carne merece
respeito. Olha que bonito moço, passada a faca quanta fibra fica, essa cor
vermelha vibrante, o cheiro é inebriante. Sei que tem gente que prefere não
comer, que tristeza! Somos carnívoros, é a nossa condição, nossa natureza. Pior
do que não degustar carne é maltratá-la. Vejo muita gente dilacerando o corpo,
pra isso já basta o tempo que nos rói segundo a segundo. Às vezes é simples descuido, outras falta de
amor para consigo mesmo. Contudo algo é certo, carne foi feita pra usar. Quanto
desperdício por aí, quanto pedaço de carne que perambula pelas ruas sempre no
resguardo. Conheço um monte. A porta do açougue não deixa de ser também uma
janela, uma janela para o mundo. Não adianta moço, o povo diz e é verdade, mais
dia menos dia a terra vem e come, consome, o corpo some. Carne também exige
ciência, usa mas não abusa e se puder lambuza.
Você já deve ter percebido que esse é um assunto que muito me apetece. A
gente é assim, gosta de falar sobre aquilo que conhece, pelo menos é assim que
deveria ser, não é? Nunca tive muita oportunidade de estudo mas sei como
ninguém a maneira de tratar um naco, fazer um lanho, uma vida inteira dedicada
à carne. Não me faz falta nenhuma papel de diploma pendurado aqui na parede. Mas
se tem uma coisa que me deixa triste é quando penso que tem gente que sonha em
comer carne, e fico mais triste ainda ao pensar que alguns morrem sem comer um
pedacinho sequer, sem sentir aquele cheirinho de um bom bife ardendo na
frigideira. Judiação pura! O churrasco, por exemplo, é uma das maiores
afirmações da nossa condição, o cheiro que faz a gente salivar, é melhor nem
falar. Privar alguém desse prazer só pode ser coisa de quem não tem o coração
feito de carne. E não há coisa mais
linda que uma carne de moça no auge de seu vigor. Moça nua despe-nos de
qualquer palavra. Já imaginou paixão sem carne? Impossível! A vida acontece
aqui na nossa frente. É assim que eu vejo, vejo com esses olhos feitos também
de carne. Espírito nunca vi nenhum. Acho que ninguém nunca viu. Quem sabe do real
valor da carne não tem tempo pra perder com essas coisas. Se a gente se pega a
pensar em disparates de outro mundo perdemos o esplendor maior da carne. Carne é
igual fruta, tem época certa. Aproveitou? Fez bem. Caso contrário o desejo fica
latente lá latejando, e o arrependimento por não ter desfrutado deixa a saliva
amarga moço, um amargor que nem suco de fruta madura e doce adoça.
Quase meio-dia já, o corpo, que de carne é feito, carne pede. E aí seu
moço, já escolheu a carne que vai levar pro almoço?
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